O Supremo Tribunal Federal (STF) acaba de decidir a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 4.815, declarando a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil. Através de interpretação conforme à Constituição Federal, entendeu-se que a veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, independe de prévia autorização dos biografados ou de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, caso a pessoa retratada seja falecida).
Entenda a decisão do STJ sobre as biografias no Brasil
A decisão é histórica. Nos últimos anos, as divergências entre, de um lado, biógrafos e editoras, e de outro, pessoas retratadas em biografias ou seus familiares, causaram uma insegurança jurídica que praticamente paralisou a produção de biografias.
De fato, enquanto determinados juízes entendiam que havia a necessidade de consentimento prévio para a publicação dessas obras, criou-se uma mercantilização das biografias por parte de pessoas que se consideravam donas das histórias. Editoras negociavam fortunas com biografados ou seus familiares; autores viam anos de trabalho se perderem.
Dessa forma, a decisão resolve um aspecto importante da polêmica envolvendo essas obras. A tendência é que as editoras e os biógrafos passem a investir mais dinheiro e tempo para a realização de obras que tratam da vida de figuras históricas. Porém, engana-se quem pensa que as polêmicas envolvendo essas obras estão superadas.
Na verdade, os problemas estão apenas começando. Como dito no parágrafo anterior, a decisão provavelmente terá como efeito um estímulo à produção de biografias. Sendo assim, problemas não solucionados pela ADI 4.815 se repetirão com ainda maior frequência, bem como novas polêmicas passarão a fazer parte do debate público.
Ou seja, a decisão fixou o seguinte entendimento: não há necessidade de se conseguir autorização prévia de certas pessoas para a publicação de uma obra biográfica. Não ficou decidido, pois não era objeto do processo, se o Judiciário pode realizar o controle prévio dessas obras por outros motivos, como, por exemplo, uma violação grave de direito fundamental por meio de informação inverídica, ou que fira indevidamente a intimidade ou a honra da pessoa retratada.
Apesar de os votos indicarem uma preferência pelo controle a posteriori da liberdade de expressão, o objeto da ADI era apenas a questão da autorização prévia. Portanto, não há decisão definitiva sobre o controle judicial prévio da liberdade de expressão em decorrência de outros motivos.
Além disso, mesmo quanto aos mecanismos de controle posterior, há sérias dúvidas quanto à aplicação dos mesmos. Continua havendo uma lacuna, em nosso ordenamento, em relação à possibilidade de apreensão de livros após a publicação, bem como quanto à remoção de conteúdo em futuras edições.
Deve-se ressaltar que o próprio caso paradigmático envolvendo Roberto Carlos não tratava apenas da questão da autorização prévia, e sim da violação à privacidade e honra em decorrência da divulgação de certos fatos. Isto é, a obra não foi proibida pelo cantor antes da publicação; na verdade, o juiz da 20ª Vara Cível do Rio de Janeiro determinou que os exemplares já publicados fossem retirados de circulação. A decisão do STF não impede esse tipo de entendimento, já que a ADI limita-se à questão da autorização prévia por parte das pessoas retratadas ou de seus familiares.
Ainda não há regulamentação legal tratando disso no Brasil. Em 2014, porém, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n° 393/2011 elaborado pelo Deputado Newton Lima. O projeto altera o artigo 20 do Código Civil, deixando claro, em primeiro lugar, que não se exige autorização para a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidades biográficas de pessoas que tenham “dimensão pública” ou envolvidas em “acontecimentos de interesse da coletividade”.
Por meio de emenda apresentada pelo Deputado Ronaldo Caiado, incluiu-se um parágrafo que autoriza a pessoa que se sentir atingida em sua honra, boa fama ou respeitabilidade, a requerer a exclusão de trecho que lhe for ofensivo em edição futura da obra, sem prejuízo da indenização e da ação penal pertinentes.
Ou seja, esse projeto procura regulamentar a questão do controle judicial posterior à publicação das biografias, permitindo a retirada de determinados trechos em edições futuras, mas não a apreensão de edições já publicadas. Trata-se de uma solução interessante, porém o texto ainda depende de aprovação pelo Senado Federal. Enquanto isso não ocorrer, prevalecerão a insegurança jurídica e as decisões divergentes, dependendo-se demasiadamente do entendimento dos juízes quanto a esse ponto.
Mas há outros tipos de responsabilização posterior que causam polêmica, como o direito de resposta. Após a decisão proferida na ação de descumprimento de preceito fundamental n° 130, que considerou a Lei de Imprensa (Lei n° 5.250/67) não recepcionada pela Constituição de 1988, há uma lacuna no ordenamento quanto à forma como esse direito, previsto no artigo 5°, inciso V, da Constituição Federal, deva ser aplicado. Se a questão já é complexa envolvendo periódicos, fica ainda mais no caso de biografias.
Verifica-se, além disso, a possibilidade de que casos já julgados, ou que tenham sido objeto de acordo para a retirada de circulação de determinados livros, voltem à tona. Em relação à obra que trata da vida de Roberto Carlos, por exemplo, pode-se abrir uma nova disputa judicial com o biógrafo Paulo Cesar Araújo. No caso, após a decisão liminar determinando a suspensão da comercialização do livro, foi feito um acordo por meio do qual o autor se comprometeu a não colocar a obra novamente em circulação. Porém, e se ele acrescentar ou alterar informações? Ou reescrever totalmente a biografia, com outras palavras, mas contando exatamente os mesmos fatos? Logo após o julgamento, o biógrafo já se manifestou favorável ao lançamento de edição atualizada[1]. Pode haver uma discussão quanto à possibilidade de divulgação dessa obra “nova”.
Há outra questão que deve continuar causando discórdia. Quando se publica uma obra biográfica, seja ela literária ou audiovisual, até que ponto o nome e a imagem da pessoa retratada podem ser explorados comercialmente? Tendo em vista que, na maior parte dos casos, essas obras são publicadas visando-se ao lucro, caberá ao Judiciário estabelecer limites para essa exploração.
Por fim, deve-se ressaltar que essas são apenas algumas das polêmicas envolvendo as biografias, que não serão resolvidas pelo julgamento da ADI 4.815. Não porque haja algum erro por parte da entidade que ajuizou a ação, muito menos do STF, e sim pelo fato de que a discussão é extremamente complexa, não se limitando à questão da autorização prévia.
A decisão da Corte não coloca um ponto final na polêmica; pelo contrário, trata-se apenas de um pontapé inicial. A partir de agora, a tendência é que a discussão passe a outros níveis, talvez até mais instigantes do que a questão do consentimento prévio.
Artigo publicado no Justificando.