No dia 17 de outubro, o criador e CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, proferiu um discurso sobre liberdade de expressão na Universidade de Georgetown. Sob pressão em função de investigações de seu monopólio sobre o mercado publicitário e a gestão de dados de usuários1, além do avanço da ideia de que gigantes de tecnologia devem ser divididos em empresas menores2, Zuckerberg tentou apresentar a rede social como um baluarte da liberdade de expressão. Porém, sua visão mostra-se antiquada em um mundo que ele mesmo ajudou a criar.
As ideias expressas por Zuckerberg foram maturadas ao longo dos últimos anos. Em 2016, o Facebook possuía uma equipe de pessoas com formação ou experiência em jornalismo que moderavam os Trending Topics da plataforma. Assim, essa equipe poderia incluir ou excluir determinado assunto nessa lista.
Havia, claramente, interferência das políticas da rede social nas decisões sobre quais assuntos deveriam ficar em destaque. No desenrolar da candidatura de Donald Trump para a presidência dos EUA, conservadores passaram a sustentar que esse mecanismo diminuía artificialmente o alcance de conteúdo favorável a ele.
A polêmica levou à demissão da equipe de moderadores3. Depois disso, o Facebook anunciou que seu algoritmo seria modificado para favorecer conteúdo postado pelos amigos e familiares dos usuários. Conhece-se o resto da história: a plataforma foi muito utilizada para a disseminação de notícias falsas e descontextualizadas, além de ter contribuído para o crescimento de grupos de extrema direita em vários países.
Desde então, a rede social passou a ser bastante criticada pela esquerda, que atribui a Zuckerberg parte da responsabilidade pelo avanço dessas ideias extremistas. Agora, a um ano da eleição presidencial nos EUA, o assunto está em alta em razão da preocupação com a possível manipulação da opinião pública por meio da rede social. Há algumas semanas, o Facebook defendeu sua decisão de não excluir um anúncio pago por um político que continha uma informação claramente falsa sobre a pré-candidata democrata Elizabeth Warren, o que gerou muitas críticas.
O discurso do CEO do Facebook deve ser entendido, portanto, de acordo com o contexto atual.
Zuckerberg encontra-se pressionado por todos os lados do espectro político, além de sofrer investigações tanto nos EUA quanto na Europa em função de seu monopólio no mercado publicitário e na gestão de dados de usuários. Nesse cenário, ele buscou reforçar uma suposta neutralidade da rede social, que garantiria aos cidadãos de todo o mundo um espaço livre para a expressão de ideias.
O discursso de Zuckerberg sobre a liberdade expressão
Para isso, o CEO buscou se amparar em uma doutrina bastante permissiva da liberdade de expressão que é adotada pelo seu país de origem. A Suprema Corte dos EUA consagrou, em 1964, na decisão do caso New York Times v. Sullivan, que difamações a políticos e funcionários públicos devem ser protegidas pela Primeira Emenda da Constituição, ainda que se baseiem em mentiras.
De acordo com Zuckerberg, não cabe a uma empresa privada como o Facebook exercer moderação sobre críticas que as pessoas fazem a políticos na rede social, ainda que se trate de um anúncio pago criado por um político concorrente.
Porém, Zuckerberg ignorou em seu discurso diversos pontos importantes. A doutrina dominante nos EUA sobre liberdade de expressão se baseia na premissa de que deve haver um “mercado livre de ideias” (marketplace of ideas), no qual a circulação de ideias deve ser totalmente livre, para que as melhores prevaleçam sobre as piores. Mas essa doutrina foi criada em um mundo anterior à internet e às redes sociais.
A circulação de ideias no Facebook não se dá de forma livre, mas depende da arquitetura dos algoritmos adotados pela empresa. Diversas pesquisas mostram que não são as ideias mais razoáveis que tendem a se destacar no Facebook e em outras redes sociais, mas as que tendem a atingir de forma mais eficaz as emoções dos usuários.
Além disso, o domínio de Facebook e de Google sobre o mercado publicitário digital prejudica financeiramente empresas jornalísticas sérias, o que leva a uma diminuição da circulação de conteúdo de qualidade. Como se não bastasse, o Facebook diminui o alcance de “posts” que contenham links que possam levar o usuário para fora da rede social.
A defesa da neutralidade da plataforma também não se sustenta. Uma simples decisão de Zuckerberg, como a tomada no início de 2018 no sentido de favorecer conteúdo produzido por amigos e familiares4, diminuiu muito o alcance de conteúdo produzido por jornais.
Além disso, Zuckerberg se arvora na ideia de que o Facebook seria composto por uma comunidade de bilhões de usuários em condição de igualdade que podem expor livremente e de forma gratuita suas ideias e influenciar as outras pessoas. Nada mais enganoso. O Facebook não excluiu, mas pode até mesmo ter ampliado, a importância do dinheiro para a amplificação de ideias. Ou seja, é necessário pagar para que o conteúdo criado tenha um grande alcance.
Os fatos apresentados acima evidenciam que a defesa apaixonada da liberdade de expressão exposta por Zuckerberg não se sustenta no mundo atual.
Na prática, sequer o Facebook aplica essa doutrina em sua integralidade, já que a rede social continua se arrogando ao direito de definir o que é uma imagem pornográfica (diversas polêmicas envolvem a exclusão de fotos que mostram seios de mulheres), por exemplo, além de estabelecer as diretrizes sobre o que ultrapassa os limites da liberdade de expressão, devendo ser excluído (em Mianmar e na Índia, o Facebook já admitiu ser necessário excluir determinados “posts” que podem levar a linchamentos5).
Portanto, o criador do Facebook defende os interesses de sua empresa com base em uma doutrina que ainda possui bastante força nos EUA, mas que passa a ser cada vez mais questionada por não se adequar ao novo mundo que o próprio CEO ajudou a criar. A expectativa criada antes de seu discurso e a repercussão que houve depois são sintomas de um problema que precisa ser enfrentado: o alcance e os limites da liberdade de expressão das pessoas ao redor do mundo dependem das decisões de uma única pessoa, que representa exclusivamente seus próprios interesses.
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1 Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/06/economia/1567786887_518632.html>. Acesso em 30 de outubro de 2019.
2 Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/04/internacional/1570189971_000536.html>. Acesso em 30 de outubro de 2019.
3 Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-37950265>. Acesso em 30 de outubro de 2019.
4 Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/12/tecnologia/1515730941_876050.html>.
5 Disponível em <https://www.nytimes.com/2018/11/06/technology/myanmar-facebook.html>.
Publicado no Jota.