Um bolinho de madeleine e uma xícara de chá evocaram as reminiscências sensoriais de paladar e olfato, responsáveis pelo desencadeamento do processo de reconstrução de memória do grande romance do século XX.
A partir de uma madeleine, o eu-lírico de Marcel Proust recria os dois caminhos de sua infância, em Combray; o surgimento e o desaparecimento de Albertine; os reinos das raparigas em flor, em Balbec e em Gomorra; em suma, o tempo perdido e o tempo redescoberto. Entre memória e esquecimento, Em busca do tempo perdido é um constante recriar da história, pelo redimensionamento das apreensões do passado.
Após um século de publicação da obra, fenômenos surgidos da sociedade em rede perpassam, sobremaneira, o processo individual de (re)construção da verdade histórica. O direito do indivíduo ao esquecimento, por vezes, implica-se o direito de memória da coletividade.
STF reconhe o direito ao esquecimento
Nos últimos dias de 2014, o plenário virtual do STF reconheceu repercussão geral à aplicação do “direito ao esquecimento”. Isto é, como um dos corolários da dignidade humana, o direito de evitar a veiculação midiática de fatos pretéritos que supostamente estavam esquecidos pela sociedade.
A matéria é objeto do ARExt 833.248, interposto por familiares da vítima de um homicídio ocorrido no Rio de Janeiro, em 1958. Em razão da veiculação pelo programa “Linha Direta Justiça” pela TV Globo, em 2004, os irmãos da vítima ingressaram com ação judicial de proibição da divulgação de nome e imagem da vítima, bem como de indenização pela utilização sem autorização do nome e imagem, que acarretaram, nas palavras dos parentes, a reabertura de “feridas psicológicas”, uma vez que o “tempo se encarregou de tirar o tema da imprensa”.
Em contestação, a emissora de televisão sustentou o caráter jornalístico de um fato histórico e de domínio público. Desta feita, a ação foi julgada improcedente pelo juízo da 47ª vara Cível do Rio de Janeiro, com entendimento mantido pelo Tribunal de Justiça do Estado e pelo STJ.
O ministro Dias Toffoli, relator do caso, reconheceu a repercussão geral, no que foi acompanhado pela maioria da corte, pela densidade constitucional do tema que extrapola os interesses subjetivos das partes. Trata-se da harmonização dos princípios constitucionais de liberdade de expressão e direito à informação, de um lado, e inviolabilidade da imagem, da intimidade e da vida privada, enquanto corolários da dignidade da pessoa humana, de outro.
Antes mesmo do julgamento de mérito pelo Supremo, o direito ao esquecimento já vem sendo socialmente chancelado. Em razão da responsabilização pelo Tribunal de Justiça da União Europeia do Google pelos dados pessoais exibidos nos seus resultados de pesquisa, a empresa já disponibiliza formulário de solicitação para exclusão de links com conteúdo “inadequado, irrelevante ou excessivo” sobre sua pessoa.
Artigo publicado no Migalhas.