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Reexibição de ‘Pantanal’ levou a julgamento histórico do STJ

Frullani Lopes Marcelo Frullani 27 de julho de 2022

No final de março deste ano, a TV Globo lançou uma nova versão da novela “Pantanal”, baseada no texto de Benedito Ruy Barbosa, com adaptação realizada por seu neto Bruno Luperi. Trata-se de momento oportuno para relembrar um caso paradigmático julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que deve ser observado por todos os profissionais que trabalham com obras protegidas por direitos autorais.

A primeira versão da novela foi produzida pela extinta TV Manchete no início da década de 1990. Benedito assinou um contrato de cessão (juridicamente seria mais adequado denominá-lo licença, já que não se trata de transferência definitiva) dos direitos autorais sobre os textos literários pelo período de dez anos. Em 1995, o escritor assinou um contrato por meio do qual renunciava expressamente, em caráter irrevogável e irretratável, ao direito de receber quaisquer valores oriundos de reexibições, utilizações ou negociações dos direitos de exibição da novela produzida pela emissora com terceiros.

Com a extinção da TV Manchete, o SBT adquiriu não apenas as fitas que continham os capítulos da obra (suporte físico), mas também os direitos autorais de exibição. Assim sendo, a emissora decidiu reexibir a novela em 2008, sem pedir autorização prévia de Benedito.

Inconformado com esse fato, o escritor ingressou com ação judicial em face da emissora de Silvio Santos para pleitear indenização por danos materiais e morais. Em relação aos primeiros, Benedito alegou que os negócios jurídicos envolvendo direitos autorais devem ser interpretados de forma restritiva, de modo que eventual reexibição da novela dependeria de autorização prévia dele; já em relação aos segundos, o escritor alegou que a novela foi exibida com uma série de cortes de cenas e supressão de diálogos, o que violaria sua honra e sua reputação.

Como a lei de direitos autorais ajudou no caso.

Antes de tratar do resultado da ação judicial, cabe destacar que a distinção entre direitos patrimoniais e direitos morais de autor foi essencial para o julgamento do caso. Nossa Lei de Direitos Autorais prevê duas espécies de direitos: (i) de um lado, os patrimoniais, que incluem, por exemplo, o direito de autorizar a reprodução, a edição, a adaptação, a tradução, a distribuição e a exibição da obra, entre outros; (ii) de outro lado, os morais, que incluem, por exemplo, o direito de reivindicar a autoria da obra a qualquer tempo, de ter seu nome indicado como autor, de assegurar a integridade da obra.

Enquanto os direitos patrimoniais podem ser livremente cedidos ou licenciados, seja a título gratuito ou oneroso, a lei impede a transferência dos direitos morais. Ou seja, ainda que um autor queira, ele não pode renunciar ao direito de assegurar a integridade de sua obra, opondo-se a modificações que podem descaracterizá-la, por exemplo.

Após decisões conflitantes em primeira e segunda instâncias, a maioria da 3ª Turma do STJ entendeu, no julgamento do Recurso Especial nº 1.558.683/SP, que não havia dano material a ser indenizado, já que o escritor renunciara expressamente, em 1995, ao direito de receber valores oriundos de explorações econômicas posteriores da obra, incluindo a transferência dos direitos autorais sobre a obra audiovisual para terceiros.

Contudo, diversa foi a decisão em relação ao pedido de indenização por danos morais. A maioria dos ministros da 3ª Turma do STJ entendeu que, por ser participante de obra coletiva (novela), o escritor tem seus direitos garantidos pela Constituição Federal, cujo artigo 5º, inciso XXVIII, assegura a proteção das participações individuais em obras coletivas. A mesma proteção está expressa no artigo 17 da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998).

Por isso, entendeu-se que os cortes em cenas e a supressão de diálogos violaram o direito moral de autor de assegurar a integridade de sua obra, opondo-se a modificações ou à prática de atos que possam prejudicá-lo, como autor, em sua reputação ou honra.

O SBT, porém, levantou uma questão importante: as fitas adquiridas já continham esses cortes e supressões, de modo que a emissora não poderia ser responsabilizada por eles, segundo seu raciocínio.

De fato, a prova pericial realizada ao longo do processo confirmou essa alegação. No entanto, mesmo esse fato não alterou a conclusão do STJ. Apesar de esses cortes serem preexistentes, o SBT deveria ser responsabilizado pela reexibição da novela, pois decidiu apresentá-la nessas circunstâncias.

O julgamento do STJ nesse caso envolvendo Benedito Ruy Barbosa e SBT deve ser observado por todos aqueles que trabalham com obras protegidas por direitos autorais, já que a aquisição de direitos patrimoniais de autor não atribui liberdade total ao adquirente, que deve sempre respeitar os limites estabelecidos pelos direitos morais de autor.

 

Publicado no Jota.

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