A habilitação de entidades de gestão coletiva de direitos
Um dos derradeiros atos do Ministério da Cultura, antes de sua já confirmada extinção em 2019, teve grande repercussão no início de dezembro. Pela primeira vez, entidades foram habilitadas para cobrança e gerenciamento coletivo de direitos autorais e conexos ao de autor no setor audiovisual: a Interartis Brasil, que representa intérpretes de televisão, vídeo ou cinema; a Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual (DBCA) e a Gestão de Direitos de Autores Roteiristas1. Algo que antes era restrito ao setor da música passa a estar presente no audiovisual.
A habilitação encerra um capítulo longo das discussões que envolvem direitos de autor e conexos de obras audiovisuais, mas por certo não as encerram2. Na verdade, os conflitos entre, de um lado, atores, diretores e roteiristas, e de outro, produtores e exibidores, deve se acirrar nos próximos meses, especialmente em âmbito judicial.
O que diz a lei sobre direito autoral
Antes de explicar como devem se configurar esses conflitos, é necessário apresentar um panorama de como a obra audiovisual é tratada na lei brasileira de direito autoral. A Lei nº 9.610/98 prevê, em seu artigo 16, que são coautores o diretor e o autor do assunto ou argumento literário, musical ou lítero-musical3. Aqui, começam os primeiros problemas, pois a lei não define o que é “autor do assunto ou argumento”; normalmente, interpreta-se que é o roteirista. Mas não são todos os coautores que podem exercer os chamados “direitos morais do autor”4, pois o artigo 25 atribui essa incumbência apenas ao diretor.
Quanto aos atores que participam da obra, não são atribuídos a eles direitos autorais, mas os chamados “direitos conexos”. Ou seja, o ator não é titular de direito autoral sobre a obra como um todo, mas possui determinados direitos, tanto patrimoniais quanto morais, sobre suas interpretações, previstos no artigo 90.
Há dois pontos normalmente levantados por produtores e por exibidores sobre a titularidade de direitos sobre a obra como um todo que merecem atenção, pois foram mencionados ao longo das discussões sobre a habilitação das entidades mencionadas acima. Em primeiro lugar, defende-se que a obra audiovisual é coletiva, nos termos do artigo 5º, inciso VIII, alínea h da Lei nº 9.610/985, pois seria formada a partir de uma fusão de contribuições individuais que culminariam em uma criação única, por meio da iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica; assim, nos termos do artigo 17, §1º6, defende-se que o produtor seria titular originário7 dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra, cabendo a ele remunerar as participações individuais (de diretores, roteiristas e atores). Esse argumento deve ser afastado pois, ainda que se entenda que a obra audiovisual se adequa em tese ao conceito de obra coletiva, o artigo 16 deve ser considerado regra excepcional, que atribui expressamente a determinadores criadores, e não ao organizador (produtor), a titularidade originária do direito autoral.
O segundo argumento levantado pelos produtores e exibidores é mais forte. Ao tratar da utilização da obra audiovisual, o artigo 818 da Lei nº 9.610/98 teria criado uma presunção de que todos os direitos patrimoniais, tanto autorais quanto conexos, seriam automaticamente transferidos ao produtor quando há uma autorização do autor ou intérprete para a produção audiovisual. Ou seja, ainda que o argumento mencionado no parágrafo anterior não seja acolhido, e que o produtor não seja considerado titular originário dos direitos, ele seria titular derivado9, pois os direitos patrimoniais necessariamente deveriam ser transmitidos a ele por força da lei. Caberia ao produtor centralizar todos os direitos, realizando o pagamento uma única vez a todos aqueles que contribuíram com a obra; depois disso, ele poderia obter todos os lucros sobre a exploração econômica da obra, não cabendo mais qualquer pagamento aos atores, diretores e roteiristas.
Contudo, esse argumento também deve ser rejeitado. O artigo 81 não estabelece que os direitos patrimoniais devem necessariamente ser todos transferidos ao produtor; na verdade, o dispositivo prevê apenas que, a partir do momento em que há autorização do autor ou intérprete para produção audiovisual, incide uma presunção de que foi dado consentimento para sua utilização econômica10. O direito de explorar a obra economicamente é diferente da titularidade completa de todos os direitos de autor e conexos por parte de uma única pessoa física ou jurídica.
Retomando as principais questões já tratadas até aqui: quanto à questão da titularidade, conclui-se que a Lei nº 9.610/98 não atribui titularidade originária dos direitos sobre a obra ao produtor (pois há uma exceção à regra da titularidade de obras coletivas), nem uma titularidade derivada automática, por força do artigo 81 (pois esse dispositivo cria apenas uma presunção de que o produtor tem direito de utilização econômica da obra). Mas não se pode ignorar que a maior parte dos contratos de produção prevê, de fato, a transferência completa dos direitos patrimoniais, sejam os autorais (de diretores e roteiristas) ou conexos (de intérpretes), para o produtor. Isto é, quase sempre o contrato estabelece que o produtor será titular derivado dos direitos.
Nesse ponto, surge outra discussão envolvendo a validade dessa cessão, pois a Lei nº 6.533/78 prevê, em seu artigo 1311, que não é permitida a cessão ou promessa de cessão de direitos autorais e conexos “decorrentes da prestação de serviços profissionais”, e que os artistas devem ser remunerados a cada exibição da obra. Os atores, diretores e roteiristas sustentam que esse artigo deve levar à invalidade dos contratos que preveem a cessão de direitos ao produtor. Assim, deveriam ser remunerados por cada exibição da obra, ainda que o contrato de produção preveja a cessão dos direitos, pois esta não seria juridicamente válida. Já os produtores e exibidores entendem que esse dispositivo foi revogado tacitamente pela Lei nº 9.610/98, pois haveria nela normas incompatíveis com o artigo 13 da Lei nº 6.533/7812, por isso as cessões seriam plenamente válidas.
O que alegam os produtores e exibidores sobre o direito de autor
Produtores e exibidores alegam que, como o artigo 13 da Lei nº 6.533/78 teria sido revogado tacitamente, não haveria atualmente em vigor qualquer disposição legal que preveja um direito dos diretores, roteiristas e atores a uma remuneração adicional por cada exibição da obra, ao contrário do que ocorre com a execução pública de músicas, por exemplo, regulamentada pelo artigo 68 da Lei nº 9.610/98. Os artistas alegam, em primeiro lugar, que o artigo 13 ainda está em vigor; em segundo lugar, que a Lei nº 9.610/98 de fato não regulamenta a remuneração adicional a atores, diretores e roteiristas que participam da obra audiovisual, mas isso não exclui a existência do direito; isto é, o direito existiria, mas sua cobrança não estaria regulamentada pela lei com tantos detalhes como a execução pública musical.
O Ministério da Cultura entendeu que os argumentos apresentados pelos produtores e exibidores podem ser discutidos judicialmente, caso a caso, de modo que a validade de cada contrato de produção seja avaliada em concreto. Porém, não seria adequado excluir, de forma abstrata, a possibilidade de que os artistas tenham esse direito; como se entendeu que o ato de habilitação não é discricionário, mas vinculado13, caberia ao Ministério apenas analisar se os requisitos legais para habilitação das entidades de gestão coletiva foram cumpridos.
Sendo assim, ainda há pelo menos dois focos de conflito que devem ser observados nos próximos meses no Judiciário: em primeiro lugar, produtores e exibidores devem questionar por meio de ação judicial a habilitação das entidades de gestão coletiva de direitos dos atores, diretores e roteiristas; em segundo lugar, haverá conflitos concretos, a cada cobrança realizada por essas entidades, que oporão os argumentos mencionados ao longo deste texto. Dessa forma, será verificada caso a caso a possibilidade ou não de cobrança de remuneração adicional a cada exibição da obra audiovisual.
Portanto, a habilitação realizada pelo Ministério da Cultura foi uma grande conquista da classe artística, mas ainda não encerra a disputa, pois produtores e exibidores ainda questionarão judicialmente tanto a possibilidade de gestão coletiva dos direitos quanto a efetiva existência dos direitos nos casos concretos. De todo modo, é importante cobrar uma revisão da legislação de direitos autorais brasileira, para que seja dado um tratamento mais coerente à obra audiovisual, diminuindo assim a insegurança jurídica que cerca a área.
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1 Disponível em <http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/entidades-do-setor-audiovisual-sao-habilitadas-para-cobrar-direitos-autorais/10883>. Acesso em 12 de dezembro de 2018.
2 As manifestações e pareceres apresentados ao longo da consulta pública aberta pelo Ministério da Cultura para discutir a habilitação das entidades podem ser acessadas neste site: http://www.cultura.gov.br/sdapi.
3 Já o parágrafo único do artigo 16 prevê que, em desenhos animados, são coautores também os que criam os desenhos utilizados na obra.
4 São aqueles direitos inalienáveis previstos no artigo 24 da lei.
5 Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:
(…)
VIII – obra:
(…)
h) coletiva – a criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma
6 Art. 17. É assegurada a proteção às participações individuais em obras coletivas.
§ 1º Qualquer dos participantes, no exercício de seus direitos morais, poderá proibir que se indique ou anuncie seu nome na obra coletiva, sem prejuízo do direito de haver a remuneração contratada.
7 Titular originário é o autor da obra, aquele que primeiro obteve os direitos sobre ela.
8 Art. 81. A autorização do autor e do intérprete de obra literária, artística ou científica para produção audiovisual implica, salvo disposição em contrário, consentimento para sua utilização econômica.
9 Titular derivado é aquele que não é autor da obra, mas que adquiriu os direitos patrimoniais sobre ela.
10 Essa presunção, deve-se ressaltar, é relativa, pois o próprio artigo 81 prevê a expressão “salvo disposição em contrário”.
11 Art . 13 – Não será permitida a cessão ou promessa de cessão de direitos autorais e conexos decorrentes da prestação de serviços profissionais.
Parágrafo único – Os direitos autorais e conexos dos profissionais serão devidos em decorrência de cada exibição da obra.
12 Em especial, o artigo 92, cujo caput prevê o seguinte: “Aos intérpretes cabem os direitos morais de integridade e paternidade de suas interpretações, inclusive depois da cessão dos direitos patrimoniais, sem prejuízo da redução, compactação, edição ou dublagem da obra de que tenham participado, sob a responsabilidade do produtor, que não poderá desfigurar a interpretação do artista”. A entidade que defende os interesses de atores interpreta a expressão “cessão dos direitos patrimoniais” como se fizesse referência à cessão dos direitos autorais sobre a obra por parte dos coautores, não aos direitos conexos de intérpretes. Além disso, ao tratar da fixação de interpretações por parte de empresas de radiodifusão, o parágrafo único do artigo 91 trata da remuneração adicional por reutilização da fixação. Ou seja, ao menos nas hipóteses em que as próprias emissoras de televisão são produtoras das obras, a lei é expressa ao prever a remuneração adicional.
13 De acordo com Odete Medauar, atos administrativos discricionários “são aqueles resultantes de alguma escolha efetuada pela autoridade administrativa”. O Ministério da Cultura entendeu, porém, que o ato de habilitação das entidades de gestão coletiva dos direitos dos artistas é vinculado; atos administrativos vinculados, segundo a mesma autora, “são aqueles editados sem margem de escolha, pois a legislação já predetermina o seu teor, se atendidas as especificações aí fixadas”. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 11ª edição. São Paulo: RT, 2007. p. 146.
Publicado no Jota.