Feche acima da mão do homem tocando violão.

Judiciário desafinado: o caso João Gilberto x EMI

Frullani Lopes Marcelo Frullani 07 de março de 2022

Há anos, o cantor e compositor João Gilberto e a gravadora EMI se enfrentam judicialmente pelos direitos autorais sobre obras do início da carreira de um dos fundadores da bossa nova.

No final da década de 80, a EMI lançou um CD intitulado “O Mito”, sem autorização de João Gilberto, que ajuizou uma ação em face da gravadora.

As instâncias ordinárias da Justiça Estadual do Rio de Janeiro reconheceram o direito à indenização por danos materiais, fixando royalties no valor de 18% sobre as vendas dos CDs. O pedido de danos morais, que se baseou no fato de que a remasterização levou a uma modificação de algumas das canções, não foi acolhido nas duas nstâncias.

Em virtude disso, o artista interpôs recurso especial em relação a essa decisão, com o objetivo de também obter indenização por danos morais. No final de 2011, a Terceira Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) entendeu ser direito moral do autor recusar modificações em sua obra. O artigo 24, inciso IV, da Lei nº 9.610/98, prevê que é direito moral do autor “assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-lo ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra”.

Segundo o perito Paulo Jobim, filho de Antonio Carlos Jobim, em razão da remasterização “a obra perdeu transparência nas frequências médias e as reverberações agudas se tornam muito evidentes, atrapalhando a audição”. Por causa desse fato, a Terceira Turma condenou, por maioria, a gravadora a pagar indenização por danos morais a João Gilberto.

Entenda mais sobre o caso João Gilberto

Apesar disso, as disputas judiciais entre as duas partes não cessaram. No início de 2013, João Gilberto ajuizou nova ação judicial em face da gravadora EMI, que corre perante a 2ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro. O objetivo do novo processo é obter a declaração de extinção da relação contratual de “locação de serviços” e a entrega dos masters dos LPs “Chega de Saudade”, “O Amor, O Sorriso e a Flor”, “João Gilberto” e do compacto vinil “João Gilberto cantando as músicas do filme Orfeu do Carnaval”. Além disso, o autor pede a condenação da ré a franquear-lhe acesso irrestrito por tempo indeterminado a seu repertório original e, por consequência, aos masters originais das obras.

Os argumentos apresentados pelo artista são os seguintes: o réu abusou de seu suposto direito de retenção das gravações originais, produzindo cópias adulteradas sem o consentimento do autor; o contrato estabelecido entre as partes era de adesão, e por isso a interpretação de suas cláusulas deve ocorrer em seu favor; o STJ já reconheceu que a gravadora não pode mais comercializar as versões adulteradas e remasterizadas das obras do artista. Por fim, o autor pede antecipação de tutela, com base no argumento de que já tem 81 anos de idade, e que por isso é urgente a necessidade de garantir a ele o acesso aos masters originais das obras, para que possa trabalhar pessoalmente sobre as mesmas.

O juiz de primeiro grau concedeu a antecipação de tutela, afirmando que “é evidente a urgência de viabilizar que João Gilberto, aos 81 anos de idade, possa se debruçar sobre sua obra para atualizá-la, com os recursos tecnológicos contemporâneos e sob seu crivo de qualidade, havendo inegável risco de o artista já não ter condições para tanto, se esperar pelo julgamento final”.

Além disso, o juiz argumenta que, na época em que o contrato de adesão foi realizado, havia uma enorme desigualdade entre as partes. Ou seja, a EMI era dotada de grande poder econômico e técnico, enquanto João Gilberto era um jovem artista, de apenas 26 anos, sem consciência da importância que a obra criada por ele viria a ter na história da música brasileira. De acordo com o juiz, a exploração econômica das obras por parte da gravadora já remunerou além do razoável os investimentos na produção, visto que o preço estabelecido em contrato para pagamento do autor da obra seria vil. Haveria, portanto, vantagem excessiva para a gravadora.

Por fim, o magistrado afirma que a decisão do STJ, ao proibir a remasterização das obras por parte da EMI sem autorização do autor, na prática tornou ineficaz as cláusulas de exclusividade presentes no contrato firmado com João Gilberto. Sem poder remasterizar as canções, os direitos da gravadora sobre as obras deixaram de atender à sua função social, visto que a obra, de indiscutível importância para a música brasileira, não se encontra acessível ao público. A tutela antecipada foi concedida, para que João Gilberto pudesse ter acesso imediato às gravações originais de sua obra, podendo trabalhar sobre ela e controlar a qualidade de novas versões remasterizadas.

Todavia, a EMI interpôs agravo de instrumento contra essa decisão. O desembargador da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, suspendeu a tutela antecipada, ao acolher o argumento da gravadora no sentido de que o manuseio e o transporte dos masters das gravações é muito delicado, sendo imprescindível sua guarda em ambiente com temperatura e umidade controladas. Por isso, a entrega do material ao artista colocaria em risco a integridade do material. O Desembargador considerou esse receio de dano aceitável, e por isso suspendeu a tutela antecipada, mantendo as obras paralisadas nas mãos da gravadora.

Portanto, nas idas e vindas do Judiciário, o público está privado há anos de uma parte extremamente relevante da obra do pai da Bossa Nova. A resolução dessas disputas é de fundamental importância para a cultura brasileira. Chega de saudade!

Artigo publicado no site Última Instância.

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