A utilização de meios eletrônicos para divulgação de revistas e jornais vem causando uma série de disputas judiciais, opondo jornalistas e empresas de comunicação. Recentemente, um caso polêmico envolveu Millôr Fernandes e a Editora Abril.
O escritor ajuizou, em 2009, uma ação cominatória e indenizatória em face da editora, devido ao lançamento do projeto “Acervo Digital Veja 40 anos”, sendo que seu espólio prosseguiu na ação após seu falecimento, em março de 2012. Através desse projeto, disponibilizou-se na internet todo o acervo da revista em formato digital, desde sua primeira edição em 11 de setembro de 1968. Dessa forma, Millôr sentiu-se lesado ao descobrir que seus textos, cuja divulgação havia autorizado apenas por meio impresso, foram disponibilizados eletronicamente.
Em primeira instância, o magistrado negou o pedido do autor, ressaltando o relevante interesse social na divulgação desses textos e alegando que não há diferenças entre folhear uma revista ou lê-la em meio eletrônico, ou seja, teria ocorrido somente uma mudança na base de dados. Por fim, o juiz afirma que se trata de obra coletiva, por isso o escritor não teria direitos autorais sobre suas participações nas revistas.
Entenda o caso: como a republicação de artigos na internet pode violar os direitos autorais
A fundamentação da sentença de primeiro grau apresenta uma série de erros. Em primeiro lugar, o artigo 4º, inciso VIII, alínea h, da Lei 9.610/98, conceitua obra coletiva como aquela “criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma”.
A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XXVIII, alínea a, assegura a proteção às participações individuais em obras coletivas. Ou seja, a contribuição individual de um autor para uma obra coletiva distingue-se desta.
Com base nessa distinção, o artigo 36 da Lei 9.610/98 estabelece o seguinte:
“Art. 36. O direito de utilização econômica dos escritos publicados pela imprensa, diária ou periódica, com exceção dos assinados ou que apresentem sinal de reserva, pertence ao editor, salvo convenção em contrário.
Parágrafo único. A autorização para utilização econômica de artigos assinados, para publicação em diários e periódicos, não produz efeito além do prazo da periodicidade acrescido de vinte dias, a contar de sua publicação, findo o qual recobra o autor o seu direito”.
Os escritos feitos por Millôr Fernandes encontram-se assinados por ele. Em virtude disso, aplica-se o disposto no parágrafo único do dispositivo. Decorrido o prazo estabelecido, o autor retomou os direitos autorais sobre seu artigo, por isso a editora não poderia tê-los utilizado, depois de décadas, sem o seu consentimento. Ademais, dispositivos contratuais firmados pelas partes estabeleciam o direito de utilizar as obras apenas uma vez na revista Veja, voltando a seguir à propriedade exclusiva do escritor.
Como se não bastasse, o artigo 4º da Lei 9.610/98 estabelece que os negócios jurídicos sobre direitos autorais devem ser interpretados restritivamente. Além disso, a cessão de direitos autorais abrange, nos termos do artigo 49, inciso V, apenas as modalidades de utilização já existentes à data do contrato.
No momento em que as partes realizaram o contrato de cessão de direitos, o escritor autorizou a editora a divulgar seus textos apenas por meio impresso. Não se encontrava prevista a utilização por meio eletrônico, até porque essa modalidade de utilização sequer existia na época. Assim sendo, a exploração por esse meio deveria ser precedida por consentimento do autor.
Nos Estados Unidos, o caso The New York Times vs. Jonathan Tasini levou a Suprema Corte do país a discutir essa questão. Alguns jornalistas que trabalhavam como autônomos para o jornal tiveram seus textos veiculados por meio eletrônico. A Suprema Corte decidiu que deveria ocorrer nova autorização cada vez que a obra fosse publicada em outro meio[1]. Segundo Antonio Carlos Morato, existem diversos casos na jurisprudência francesa no sentido de que “a edição impressa é distinta da edição eletrônica, exigindo a autorização do jornalista”[2].
De forma correta, seguindo esse entendimento, a sentença de primeiro grau foi reformada pela 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, em Apelação nº 0214684-25.2009.8.26.0100. Com a condenação da Ré a abster-se de utilizar a obra do Autor, sob pena de multa diária, e a indenizá-lo em virtude da utilização indevida das obras, foram reafirmados os direitos dos jornalistas sobre suas participações individuais em obras coletivas.
[1] MORATO, Antonio Carlos. Direito de autor em obra coletiva. São Paulo: Saraiva, 2007. p 92.
[2] MORATO, Antonio Carlos. Direito de autor em obra coletiva. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 155.
Artigo publicado no site Consultor Jurídico.